Fingimento

 

 

Fingir é um deslocamento da não aceitação da realidade. Fingimentos surgem no cotidiano diante de realidades que denunciam, incomodam e revelam dificuldades e medos. Como enfrenta-las? Negando-as, fazendo de conta que as mesmas não existem. Como fazer isso? O primeiro passo é fazer com que ninguém saiba, ninguém perceba a dificuldade. Isso acontecendo, tudo fica mais fácil. Se nega saber, se nega conhecer essa comprovada existência.

 

O flagrante, a prova é o maior inimigo do fingidor. Evitar flagrantes e disputas cria inúmeras realidades, estabelece descontinuidade, gera enigmas, arma quebra-cabeças e, assim, se consegue fingir em paz. Esconder o amante no armário era um bom método, agora não mais. Câmeras e portarias eletrônicas atrapalham. A melhor maneira de escondê-lo é transformá-lo em um empregado que veio consertar o ar condicionado, ou no amigo gay convidado para falar sobre o roteiro da próxima festa que vai acontecer, por exemplo. Fingir é perfeito quando subverte constatação, recriando universos. Manipular o pensamento do outro torna-se conveniente, as fake News são, atualmente, um arsenal de fingimento bem eficazes. É uma ação astuta para orientar, que desmonta prévias orientações, que abre novas direções, estabelecendo descontinuidade e caos nas situações vigentes.

 

Fake News, fingimentos, negação de realidades utilizando o outro é o que há de mais espúrio para consecução de objetivos possibilitadores e destruidores da participação do outro, e do que ocorre. Sonegar dados é grave, mas além disso, fingir que não sonegou arrasa as possibilidades de estabelecer contatos com o que acontece, com o que se evidencia e está camuflado. É o jogo do perde-ganha, do esconde-esconde que gera ansiedade e medo. É o duvidar de tudo, do que se vê, do que não se vê, e até de si mesmo. Brincar com o que o outro percebe, com o que o outro constata é lesivo, cria desconfiança, dúvida e medo.

 

Filhos criados nessa atmosfera, relações afetivas e pessoais desenvolvidas nesses parâmetros são sempre esvaziadoras, neurotizantes: o que se vê não é o que se vê, e o que se percebe não é o percebido. Prevalece o Pai, a Mãe, a autoridade que explica e decide. O mundo é transformado em um mistério decifrado pelas autoridades: pai, mãe, governo, professor, pastor, terapeuta, por exemplo, são os que têm esse poder. É o império da insegurança, do medo e do fingimento.

 

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Comentários

  1. Vera, seu texto nos convida a refletir sobre o papel do fingimento como mecanismo de defesa da vergonha e responsabilização pelo erro, pela desonestidade, mas também a farsa como uma prática que alimenta o ciclo de alienação e desconexão da realidade. O fingimento é uma "solução" que sacrifica a autenticidade das relações e a clareza da percepção.

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