Centenário de Mãe Stella de Oxóssi - Liderança religiosa inesquecível
Mãe Stella de Oxóssi e Vera Felicidade no Ilê Axé Opô Afonjá em 2004 |
Todos que vivem e morrem deixam marcas. Essas marcas são abrigadas pelas memórias de seus familiares e mantidas pelos seus grupos por pouco ou muito tempo. A continuidade das presenças pessoais, após suas mortes, varia em função dos contextos que as abrigavam. Os que são líderes de comunidades propiciam essa continuidade principalmente ao efetuar mudanças e questionamentos. O conjunto de mudanças é propulsor e dinamizador. Mãe Stella de Oxóssi é um desses expoentes. Ainda adolescente ela foi iniciada em uma comunidade religiosa, que em sua época era considerada uma seita e não uma religião, uma seita menosprezada e mal vista, precisando ser coberta por mantos sincréticos, socialmente e religiosamente aceitáveis. Era o manto da legalidade que corrompia e disfarçava o autêntico, as origens africanas e tribais.
Mãe Stella foi eleita mãe de santo em 1976, amadureceu ideias e entrou em contato com todos os resquícios discriminadores que continuavam. Ela se sentia representante de uma religião, mas frequentemente a via atacada e chamada de rituais demoníacos e pagãos. Em 1983, na II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura ela se posicionou contra o sincretismo, declarou que o Candomblé é uma religião e não uma seita, que é a religião trazidas pelos africanos, definitivamente rompendo a associação do Candomblé com a ideia preconceituosa de que se tratava de práticas escusas dos negros escravizados. Desde a época da escravidão a religiosidade dos africanos escravizados foi vista com suspeita, receios e consequente repressão, levando-os à estratégia do sincretismo (associação dos Orixás com os Santos católicos, idas a Igrejas Católicas para finalizar rituais aos Orixás etc.) como maneira de exercer sua espiritualidade. Era uma forma de sobrevivência e de submissão. Manter o sincretismo era manter a desvalorização e os preconceitos, assim como as regras aviltantes estabelecidas pelo colonizador. Com seu posicionamento tudo mudou.
Lembro-me de quando o professor Ubiratan Castro de Araújo, ex-diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia – professor doutor nessa mesma universidade – e também presidente da Fundação Cultural Palmares à época, me convidou para escrever um Perfil de Mãe Stella, que resultou no livro Mãe Stella de Oxóssi Perfil de uma Liderança Religiosa.[1] Durante minhas pesquisas para esse livro, em 1999 apliquei um questionário na comunidade do Ilê Axé Opô Afonjá com o intuito de saber como Mãe Stella era percebida pela comunidade e também como eles percebiam o Candomblé. Eu já havia feito uma pesquisa semelhante em 1982 por ocasião da inauguração do Museu Ilê Ohun Lailai nessa mesma comunidade. Em 1982, 70% dos membros do Terreiro responderam: "o Candomblé é uma seita". Em 1999, 90% deles responderam que "o Candomblé é uma religião". Nas perguntas sobre sua Iyalorixá Mãe Stella de Oxossi, 100% respondeu que "é uma liderança carismática”, seguindo vários adjetivos como: corajosa, ilustre, forte, sábia e digna. Em 17 anos ela conseguiu mudar a percepção que os membros de sua comunidade tinham do Candomblé. Oprimidos e sem voz, agora com uma liderança legítima, reconhecida por eles como respeitável e defensora pública de sua religiosidade, se sentiram resgatados em sua origem cultural. Aprenderam que por trás de sua religião existe uma cultura, uma tradição.
Autonomia e integridade voltaram a reinar. Cabeças foram reorganizadas. Mãe Stella mudou estruturas, disse que "Iansã não é Santa Bárbara", que os pretos não são filhos de escravizados, são filhos de africanos. Mudou conceitos, mudou contextos, mudou percepção. Polarizou concordâncias e também discordâncias.
Mãe Stella liderou durante 42 anos como Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. Viajou muito pelo mundo, participou de inúmeros congressos, reuniões da ONU etc. Foi agraciada com vários títulos, homenagens, escreveu livros, fez parte da Academia de Letras da Bahia, sempre representando sua comunidade. Surpreendeu no final da vida: como caçador caiu em uma cilada, em uma armadilha, no seu caso, na da senilidade. Ela faleceu aos 93 anos de idade e os últimos dez meses de sua vida foram vividos fora de sua comunidade, onde residiu e governou por mais de quatro décadas.
Logo que faleceu, o impensável surgiu: seu corpo não retornava ao Ilê Axé Opó Afonjá para realização do ritual fundamental e necessário. Foi um cataclismo. Ninguém entendia e nem podia concordar, nem compreender essa ausência, tudo virou revelia. Os Obás e outros filhos de santo seus, com a determinação de uma juíza baiana, conseguiram que seu corpo estivesse presente no Afonjá para a realização do indispensável. Foi um verdadeiro susto essa ausência. Um pânico. Parecia que o mundo desmoronava, se desfazia, levando junto sua imagem.
Mas, a ordem prevaleceria, afinal era de Odé Kayodê que se tratava – seu orukó, nome de iniciada em iorubá, Odé, é designação do Orixá Oxóssi, é o caçador. Seu corpo voltou à sua casa, a seu Ilê. No Ilê Axé Opô Afonjá, o que isso implicava em rituais foi realizado, mas, uma ou outra coisa, anteriormente por ela determinada, deixou de ser feita. Uns diziam que ela já havia abandonado tudo há algum tempo, outros diziam que o que ela deixou devia vigorar. Alguns pensavam mais em seus passeios e caçadas do que na sua volta para os rituais finais, e assim, pequenos cuidados e determinações foram desconsideradas, aumentando as mudanças e incertezas do ano de luto.
Logo depois de sua morte, ela foi homenageada pelo prefeito de Salvador – ACM Neto – nomeando uma avenida, que também recebeu uma estátua sua junto com Oxóssi. Poucos meses depois, vândalos tentaram destruir a estátua, fanáticos que são contra o Candomblé, talvez evangélicos, talvez um desafeto, enfim, não conseguiram. Da mesma maneira, casos torpes, ocorrências vis jamais destruirão o que ela significa não só para o povo preto, mas para todos que abraçam o Candomblé.
Algum tempo depois seu brilho é intenso e é o que norteia tudo que ela sempre quis que seus filhos realizassem: com determinação eles fazem parte da vida, de associações, de políticas de deliberações sociais etc. Tem sido importante ver como suas críticas aos preconceitos motivaram políticas identitárias e direitos iguais para todos. Seu verbete na Enciclopédia Negra publicada dois anos depois de sua partida diz assim: “Mãe Stella de Oxóssi teve participação decisiva no processo de dessincretização do Candomblé, abandonando as práticas católicas que nos terreiros marcavam a religião afro-brasileira como crença subordinada à Igreja. Removeu do Axé Opô Afonjá os símbolos cristãos e práticas rituais como imagens de santo e frequência à missa. Procurou unir os mais importantes terreiros da Bahia e depois de outras partes do país nesse movimento, ministrando conferências e publicando livros. Manteve durante anos coluna regular em jornal de Salvador. Em 2013, foi eleita membra da Academia Baiana de Letras. Em 1999 recebeu a medalha da Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura, por sua liderança na defesa da cultura e identidades negras no Brasil.”[2]
É um resumo do tanto que ela fez. A vida corre, tudo anda, Mãe Stella de Oxóssi faleceu em 2018, mas ela continua presente. Seu centenário é comemorado de várias formas, em vários lugares. Os dias mesquinhos, as fofocas que flertam com o ridículo não a obscurecem.
É exemplar a liminar expedida pela Justiça, a respeito do enterro de Mãe Stella. Saliento que mais uma vez, com o tumulto em torno de seu sepultamento, ela possibilitou o estabelecimento de bases jurídicas para idoneidade e individualidade do Candomblé, de seu povo, de sua comunidade. Foi o arremate final, o reconhecimento de sua religião. Essa liminar se constitui em um precedente judicial, o estabelecimento de um entendimento sobre a religião de origem africana no Brasil, seu lugar e sua posição na sociedade, um marco, uma referência nos tribunais brasileiros para disputas que envolvam o Candomblé.
Com todas as peripécias em torno de sua morte, naquele dia triste escrevi como Oni Kòwé – “dono dos escritos”, cargo que me foi concedido por ela no Ilê Axé Opô Afonjá – e publiquei nas redes sociais, um artigo sobre os acontecimentos, que, penso, demonstram sua força presente no que ela foi, e de muitas formas continua sendo. Transcrevo abaixo.
Enterro de Mãe Stella de Oxóssi
Reconhecimento jurídico de uma realidade religiosa[3]
Vera
Felicidade de Almeida Campos
28 de dezembro de 2018
Mãe Stella de Oxóssi faleceu em Sto. Antônio de Jesus-BA, às 16 hs do dia 27 de dezembro de 2018 e aconteceu uma disputa judicial sobre se o local do enterro deveria ser em Nazaré das Farinhas, interior do Estado da Bahia, onde sua companheira queria enterrá-la, ou em Salvador, a Capital e sede do Ilê Axé Opô Afonjá que ela dirigiu durante 42 anos e que reivindicava o direito de realizar rituais imprescindíveis - e de corpo presente - quando morre alguém pertencente ao Candomblé.
Os Terreiros de Candomblé existem em nossa sociedade e representam dimensões religiosas de culturas africanas, consequentemente, têm implicações sócio-políticas que envolvem direitos e reconhecimento da atividade religiosa que os define, os diferencia e geralmente os marginaliza na sociedade. O recurso judicial e a decisão subsequente frente ao impasse quanto ao enterro da Iyalorixá Stella de Oxóssi é um reconhecimento jurídico e um enfrentamento das constantes discriminações raciais às quais são submetidos os negros.
Denunciando em escala mais ampla – em site e redes sociais - as discriminações e utilizações sofridas pela figura pública da Iyalorixá Stella de Oxóssi, publiquei em 28 de dezembro de 2018:
Mãe Stella de Oxossi morreu, uma grande biblioteca de vários volumes desaparece: de Salvador-Bahia à Oyó-Ketu-África, o dia a dia, especificidades e mistérios que ela conhecia, são irreproduzíveis, não têm cópia. Entretanto, é fundamental saber que o processo dessa morte, desse desaparecimento não se deu ontem. Estamos no mundo, os processos sociais, psicológicos e orgânico-biológicos existem e a todos situam. Mãe Stella, há algum tempo estava dominada por intensas vivências de senilidade. Resistiu à morte para entrar na categoria dos heróis insepultos - como na tragédia de Antígona - ícones trágicos da nossa civilização. Suas várias mortes esmaecem histórias, mas não são capazes de desfazer memórias. Sua morte é um marco exemplar que caracteriza perdas, passagens e aleatoriedade.
A ideia de enterrá-la em Nazaré das Farinhas-BA, desconectando-a de sua comunidade, seu Egbe, criou uma série de implicações que descontinuavam práticas religiosas, ameaçando a continuidade de rituais religiosos ancestrais, o que viria a se constituir em uma discriminação à religião de origem africana por ela abraçada. Sabendo da liminar expedida pela Justiça, publiquei também no mesmo dia:
Em várias religiões, Judaismo por exemplo, os preparativos para o enterro ultrapassam esferas e determinações familiares. O mesmo acontece nas religiões africanas. Por atitudes remanescentes escravocratas se relega as religiões de origem africana a um plano de seita, consequentemente seus rituais não são respeitados: é assim desde a proibição dos tambores até ao enterro de líderes ser determinado fora do âmbito religioso. Isso é um entendimento social-antropológico que permitiu, inclusive, a decisão da Juíza Caroline Rosa de Almeida Velame Vieira, que determinou que o corpo fosse transferido de Nazaré para o Axé Opô Afonjá em Salvador. Na decisão, a juíza entendeu que: "se deve conceder à comunidade o exercício do culto religioso, ante a supremacia do princípio que aqui seria violado, de forma irreversível, do exercício livre da religião da qual a Iyá Stella de Oxóssi era líder, bem como a proteção do patrimônio histórico e cultural do exercício da religião de matriz africana”.
A seguir, na íntegra, nota da OAB-BA.[4]
Em nota oficial, a COMISSÃO ESPECIAL DE COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECCIONAL BAHIA (OAB-BA) entende a realização do velório de Mãe Stella de Oxóssi como ritual religioso.
“A Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa da OAB da Bahia vem a público manifestar seu mais profundo pesar pela morte de Mãe Stella de Oxóssi ocorrida na tarde de ontem, dia 27/12/2018, ao tempo em que se solidariza com familiares, amigos(a), filhas e filhos de santo, toda a comunidade do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, praticantes de religiões afrobrasileiras e admiradores no Brasil e no mundo.
Mãe Stella de Oxóssi formou-se pela Escola de Enfermagem e Saúde Pública e iniciou sua função religiosa em 1976, quando escolhida como quinta iyalorixá da tradicional casa Ilê Axé Opó Afonjá, a qual, sob sua guia, foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1999.
Mãe Stella de Oxóssi transcende a poderosa representatividade religiosa dada a importância sociocultural e política de suas produções literárias e artísticas, tendo ascendido à cadeira 33 na Academia Baiana de Letras, cujo patrono é Castro Alves, bem como por figurar como proeminente ativista e militante de movimentos sociais marcada pela luta pela igualdade racial e reproche ao ódio religioso.
Ciente da existência de litígio judicial em torno do sepultamento de Mãe Stella de Oxóssi, no qual se discute a sua realização em Nazaré das Farinhas, cidade em que vivia nos últimos meses com a sua companheira ou a transferência de seu corpo para Salvador, a fim de promover o cumprimento dos preceitos junto ao Ilê Axé Opô Afonjá, considerando que a sucessão espiritual que culminará na substituição da sacerdotisa prescinde da liturgia que envolve o sepultamento seguida do axexê, sob pena da inviabilização das atividades da casa e realização das obrigações de práxis, manifestamo-nos sobre o impasse instaurado.
A Comissão entende que, diante de toda uma vida dedicada ao Candomblé, mediante entrega voluntária ao sacerdócio, promovendo e defendendo a fé, além da longeva atuação na preservação da religião e da religiosidade como elementos identitários da cultura brasileira, a menos que existe disposição de última vontade (o que é desconhecido) de Mãe Stella de Oxóssi, como testamento ou codicilo, em sentido divergente, ou seja, que aponte a recusa ou negativa do ritual religioso de passagem previsto, dever-se-ia assegurar-lhe a realização, em consonância com o art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal no qual verifica a inviolabilidade da “liberdade de crença” e a garantia ‘na forma da lei a proteção aos locais de culto e suas liturgias’.
Mãe Stella de Oxóssi faz jus a todas as honras reservadas a uma sacerdotisa de sua grandeza, de acordo com a tradição que durante tantos anos observou, ensinou e conferiu ampla publicidade. Assim, a prima facie, o conjunto de elementos próprios ao cerimonial fúnebre nos termos da profissão de fé da liderança religiosa deve ser rigorosamente respeitado, em consideração à memória e empenho sobre-humano da religiosa em testemunhar da religião de matriz africana de forma sensível e translúcida”.
[1] Campos, Vera Felicidade de Almeida. Mãe Stella de Oxóssi – Perfil de uma liderança religiosa. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 2003.
[2] Gomes, Flávio S. e Lauriano, Jaime e Schwarcz, Lilia M. Enciclopédia Negra. São Paulo. Companhia das Letras. 2021. p. 372.
[3] Publicado originalmente no Site: https://www.verafelicidade.com/post/enterro-de-mãe-stella-de-oxóssi
[4] Fonte - OAB-BA, Site Oficial: https://www.oab-ba.org.br/noticia/oab-ba-divulga-nota-sobre-morte-e-sepultamento-de-mae-stella
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