Para que o inconsciente?

 

 

No final do século XIX, Freud se preparava para lançar sua teoria sobre a natureza humana no livro A Interpretação dos Sonhos (1900), com o intuito de entender e tratar distúrbios, doenças, conforme ele, tratar a neurose. Sua postulação do inconsciente como explicação da dinâmica da vida psicológica do ser humano está fundamentada em conceitos elementaristas, consequentemente reducionistas. É o que havia na psicologia recém saída da psicofisiologia desenvolvida por Wilhelm Wundt, que tentava explicar, medir e descobrir causas de toda e qualquer conduta humana. Esse resíduo associacionista estrutura e valida a ideia de natureza humana. É uma ancoragem explicativa desastrosa para o desenvolvimento dos enfoques sobre comportamento. Além da influência da psicofisiologia, a visão de atemporalidade implícita no conceito de inconsciente resulta de influência kantiana. A noção explícita em Kant, de que nada pode ser conhecido em si mesmo, e que portanto o conhecimento só é possível a partir de como as coisas aparecem à mente (distinção entre coisa em si e aparição) associada a outras divisões do processo de conhecimento (faculdade de conhecer, faculdade de apetecer, faculdade de julgar, categorias etc.) quebram a totalidade, erigindo, estabelecendo complexidades enganosas.

 

Em uma visão unitária não há como admitir existências atemporais. Por causa desses dualismos de influência metafísica, o postulado do inconsciente não pode ser comprovado. A psicanálise justifica-se dizendo que o inconsciente é um constructo lógico, explicitando a impossibilidade de comprovação experimental, e criando novo impasse, ou seja, sendo um constructo, toda a ideia de sistema inconsciente, dentro do ponto de vista tópico, fica negada, isto é, já não se poderá falar em Id, Ego e Super-Ego, consciente e pré-consciente como instâncias psíquicas. 

 

Em meu primeiro livro[1], a partir da visão gestaltista afirmo que o inconsciente é um postulado, é um mito, e comento que: “A distorção perceptiva, resultante de perceber o todo homem como soma de partes (instintos, inconsciente, Id, Ego, Super-Ego), originou uma visão mágica[2] do processo humano, e exatamente aí, nesse elementarismo mecanicista, reside a impossibilidade psicanalista de abranger a dinâmica humana enquanto ser-no-mundo, e o erro não é somente da psicanálise, mas de toda a metafísica subjetivista, ao distorcer a relação Figura-Fundo, resultante da quebra da Gestalt, da quebra da relação unitária. Essa divisão da unidade, por não apreensão da bipolaridade da unidade relacional, provocou a visão dualista e nela a hierarquização metafísica, idealista, de que a ideia é primária e cria a matéria.”

 

As cisões realizadas entre homem e mundo (funcionalismo), às vezes homem do mundo (behaviorismo) e homem x mundo (psicanálise) são nefastas. Essas dicotomias negam os dados relacionais, criam ideias de interno e externo, isolam o indivíduo de seu mundo, tirando-lhe os pés do chão. As implicações teóricas são imensas.

 

Admitir uma natureza humana é resultante da dicotomia, do reducionismo metodológico, e além disso cria e instala a ideia de complexidade do ser humano, que assim só poderia ser explicado pelo entendimento de seus vários constituintes, como seus instintos e motivadores inconscientes. Essa postura exila a dinâmica relacional, consequentemente impede perceber que o ser humano é possibilidade de relação e que isso é tudo. Estar no mundo com os outros, perceber, perceber que percebe, conhecer, constatar, pensar é o que tudo possibilita e explica, e essas conceituações, eliminando a divisão entre homem e mundo, sociedade e indivíduo, descobrindo que o aparente é o real, são algumas das novas abordagens que propus a partir da visão fenomenológica, existencial que me possibilitou, no desenvolvimento da teoria (Psicoterapia Gestaltista) e no exercício de meu trabalho psicoterápico, perceber o ser humano, transformar o que se considerava complexidade da natureza humana em infinitas possibilidades de estar no mundo com os outros.

 

Entender vocação, temperamento, talento, inteligência, maldade, bondade, como características humanas prévias e definidoras de sua personalidade, constituintes de sua natureza, é uma hipótese reducionista que destrói o humano ao contingenciá-lo a seus limites biológicos e sociais. O homem é um ser no mundo, simples, nada misterioso, nada enigmático que precise ser decifrado. Sua trajetória pode ser imprevisível ou previsível a depender dos contextos, dos caminhos percorridos.

 

Ao perceber o mundo que está diante de si, tudo é explicitado. Ao perceber o antecipado (futuro) ou o lembrado (passado), ao sair do aqui e agora, passa a estar em seu mundo particularizado por suas vivências ou autorreferenciamento. É a lembrança ou o desejo, é a frustração do não realizado. Viver no presente é realização de possibilidades e satisfação de necessidades. Deter-se no passado ou voltar-se para o futuro é acumular frustrações e desejos não atendidos. Nesse universo, repleto de infinitas variáveis é impossível aplicar parâmetros de causa e efeito, partindo de pressupostos complexos. Isso lembra o desespero de Aristóteles com sua Teoria de Classe, como dizia Kurt Lewin, ao tentar explicar o fenômeno físico da queda dos corpos. Aristóteles dizia que os corpos, ou que a matéria tinha uma natureza celeste ou terrestre. Afastados de sua natureza terrestre, longe de seu lugar, os corpos caiam, pois queriam voltar para seu mundo: a pedra, retirada da terra, queria voltar para o elemento de sua natureza terrestre. Os corpos que tinham natureza celeste, penas por exemplo, voavam buscando seu lugar natural. Aristóteles não conhecia a lei da gravidade. Freud não sabia que a percepção é a possibilidade relacional que caracteriza os processos cognitivos, que não é um mecanismo de projeção inconsciente, e assim, consequentemente, podem ser dispensados os pilares por ele construídos para sustentar o estudo do comportamento e motivações humanas. 




[1] Psicoterapia Gestaltista - Conceituações, Edição da Autora, Rio de Janeiro-RJ, 1972, pag. 71.

[2] Duas atitudes básicas caracterizam a explicação cognitiva científico-metodológica, tanto quanto a apreensão perceptiva de qualquer realidade. Designemos essas atitudes como mágica e objetiva, distorcida ou não. A atitude mágica seria resultante da vivência unilateral da situação configurada, quer isso se dê por autorreferenciamento, distanciamento ou superposição da situação enfocada por meio de sua pluralidade dimensionada, espacial ou temporalmente. O autorreferenciamento é a decodificação da realidade em termos de conhecimentos já existentes; toda vez que isso se dá, existe, na relação cognitiva, preexistências constitutivas, daí o dado real (realidade e derivados, são empregados no sentido de descrição contextual, enquanto meio geográfico) ser substituído por um significado extrínseco à sua estrutura significativa. O distanciamento resulta de uma configuração não pregnante da realidade, o que é uma decorrência de autorreferenciamentos homogeneizadores. Por meio de vários conhecimentos preexistentes, estratificam-se esquemas a partir dos quais as realidades conhecidas são afastadas para postulados genéricos e explicativos. Havendo preexistências cognitivas (autorreferenciamento), responsáveis por distanciamentos do fenômeno que se dá para conhecer ou que está sendo conhecido, a vivência temporal começa a ser apofânica (empregado no sentido de vivência derreísticas; K. Conrad - La Esquizofrenia Incipiente - Intento de un analisis de la Forma del Delirio - Madrid - Alhambra - 1963), surgindo daí uma temporalidade espacializada, estruturando-se, portanto, como um ponto a partir do qual se planificam as linhas conformadoras do que está se cumprindo como objeto de conhecimento. Ora, se determinada situação existente agora começa a ser percebida em confronto, comparação ou por meio de antes, significa que ela é percebida por meio de outra, embora semelhante, mas outra. O que se dá, então, é o conhecimento analógico, dedutivo e, portanto cartesiano. A mesma situação de agora pode também ser percebida pela estrutura temporal de depois, o que já implicaria em visualização de finalidades canalizadoras, justificativas explicativas do que-aqui-agora conheço. Por sua vez, é diferente do memorizado ou imaginado (antecipação na qual o pensamento é mediador). Esses deslocamentos temporais fazem com que o fenômeno que está sendo conhecido, apreendido perceptivamente ou categorizado se transforme em um espaço, ponto de interseção do tempo, que como tal já se torna uma variável posicional, espaço, portanto. Essas explicações acerca da atitude mágica são enfaticamente demonstradas como fundamentações concretas do conhecimento em toda posição metafísica. Tal é o caso, por exemplo, de Kant, em seu conceito de categorias lógicas, o a priori, isto é, a possibilidade do conhecimento reside além ou antes do que se está dando a conhecer. O homem foi durante muito tempo conhecido e consequentemente explicado magicamente. O animismo, espiritualismo e idealismo são etapas sistematizadas dessa posição. O "conhece-te a ti mesmo!" é um típico representante dessas abordagens: "Oh homem, conhece-te no que não és, para que sejas um homem!". Esse apelo vocativo enfeixa bem toda a atitude da preocupação mágica de conhecer-se. Essa abertura para procurar o que não era conhecido do homem no homem era resultante do a priori de que o homem era um fruto da criação divina: conhecer a criatura implicava em desvendar, conhecer o Criador, portanto, em um deslocamento. O distanciamento surgiu e o homem passa a ser conhecido por verdades genéricas, desde moira, maktub, até Deus, Santíssima Trindade etc. Aí surgem indiferenciações entre o que é criado ou o que cria, a prova do Criador passa a ser a criatura e vice-versa, a superposição existe. Somente por meio de transcendências que estruturem dogmas se poderá conhecer o homem. O "Conhece-te a ti mesmo" socrático, agora já na Summa Theológica de São Tomás de Aquino, é amar, e amar é ter fé, o conhecimento é a transcendência, tese desenvolvida por Kant e fundamentante do inconsciente para Freud. Concluindo, verificamos que apesar de todas as elaborações decorrentes do autorreferenciamento, distanciamento e superposições contextuais, o homem não se conheceu como homem enquanto ele mesmo, pois nunca se viu senão por meio de absolutos, razão de sua essência relacional não ter sido apreendida, pois ele se buscava conhecer negando-se como passível de conhecimento, quer dizer, sempre se colocava como um ponto sem plano, à medida que se fazia uma pontualização centralizadora do conhecimento de si em si mesmo. Fenomenológica e objetivamente falando, o conhecimento do homem, do mundo e dos fenômenos existe pela apreensão das relações que os constituem e que são por eles constituídas.

 

 

 

 


Comentários

  1. Uma das coisas que notei em seus livros é a densidade do textos, do conhecimento condensado em parágrafos que me pediram releituras para compreensão mais clara. Esse artigo é muito esclarecedor em termos do desenvolvimento do pensamento filosófico e psicológico, e a perspectiva da Fenomenologia e Psicologia da Gestalt, estas compreendendo a percepção direta da realidade. O simples não é o mais fácil, a complicação parece que atrai mais, com todos os buracos de coelho mágicos. Penso que a Fenomenologia e Psicologia da Gestalt são simples e, talvez por isso, difíceis de entender.

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    1. Obrigada Augusto, pelo comentário. Mas, a questão do simples é a Boa Forma (gute Gestalt). O simples é mais fácil de entender, não é o mais difícil de entender. Quando isso não acontece se deve ao fato de haver autorreferenciamento, interferências de aprendizagens passadas na percepção. O todo começa a ser decodificado em termos do que se aprendeu, tentando se encaixar nas novas aprendizagens, apresentações. Fica estabelecida a confusão, o difícil de entender.

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    2. Sua resposta é perfeita. O simples é mais fácil de entender, não é o mais difícil de entender. Isso porém exige que nos despojemos de nossas preconcepções e observemos o mundo e a nós mesmos de uma maneira nova e não mediada.

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  2. pois o que me faz precisar reler seus textos é justamente o serem simples, às vezes tão "lógicos" que parecem óbvios. Me atordoam por baterem direto com meus conflitos e desencontros. Me ensinam que o simples nada tem a ver com "simplista". Parecem uma lanterna mágica. A reversibilidade a todo momento, é flagrante.Por outro lado, as menções e seu conhecimento da filosofia, psicologia, do organismo humano só reforçam a consistência da teoria.

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  3. O seu artigo Simples e Complexo penso que desenvolve a questão que levantei de forma muito clara.

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